30 Março 2022
A Igreja precisa discernir os elementos da “teologia patológica” e os aspectos do seu tratamento histórico aos povos indígenas que ainda estão necessitando da verdadeira conversão a Cristo.
O artigo é da religiosa Nuala Kenny, Irmã da Caridade, escritora e pediatra em Nova Escócia, Canadá, publicado por La Croix, 28-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A terrível descoberta em maio de 2021 de 215 sepulturas não identificadas de crianças indígenas no local de uma antiga escola residencial em Kamloops, na Colúmbia Britânica, provocou tristeza e raiva no Canadá.
Representantes da Conferência Canadense de Bispos Católicos acompanham esta semana delegações das comunidades indígenas, Metis, Inuit e First Nations, em uma visita ao Vaticano, onde terão encontros históricos com o Papa Francisco.
Os povos indígenas estão buscando o reconhecimento dos danos que foram feitos nos internatos administrados por católicos.
Como pediatra aposentada, sou assombrada pela morte dessas crianças e cheia de tristeza por nenhuma família as ter confortado em seus últimos dias. Sinto-me com o coração partido por suas famílias em luto.
Sou religiosa das Irmãs da Caridade de Halifax, Nova Escócia. Minha congregação administrou escolas residenciais em Shubenacadie, Nova Escócia (1930-1968) e Cranbrook, Colúmbia Britânica (1936-1969). Luto para entender essa tragédia e o comportamento que era tão contraditório ao cuidado de Jesus com as crianças.
Muitos procuram respostas simples, mas os cientistas sociais, seguindo Horst Rittel, identificaram “problemas perversos”. Eles reconhecem a complexa interdependência de diversos fatores e partes interessadas com diferentes valores em contextos sociais, culturais e políticos específicos.
As escolas residenciais são exemplos dramáticos desses “problemas perversos”. Para os cristãos, eles também são problemas perversos no sentido mais profundo de serem maus, pecaminosos e corruptores.
A verdade vem antes da reconciliação.
Precisamos conhecer o papel e o objetivo do governo canadense para as escolas residenciais; discernir crenças e práticas que contribuíram para a cumplicidade da Igreja na implementação desta política; ouvir a experiência dos alunos indígenas e suas famílias; e aceitar desafios contínuos à expiação.
Em 1867, depois de expandir o oeste do Canadá aos colonos europeus, John A. Macdonald, o primeiro-ministro do Canadá, planejou a assimilação dos povos das Primeiras Nações através da criação de reservas, dependência financeira e sistemas de passe governados por agentes indígenas.
Ele desenvolveu escolas residenciais com o objetivo de “tirar o índio da criança”.
Ele ordenou que “as crianças índias tivessem o máximo possível da influência dos pais retirada, e a única maneira de fazer isso seria colocá-las em escolas industriais de treinamento central, onde adquiririam os hábitos e modos de pensamento dos homens brancos”.
As crianças indígenas foram forçadas a frequentar escolas cristãs. Eles foram separados da família, bem como os rituais espirituais culturais e nativos necessários para o desenvolvimento de sua segurança e identidade.
O médico Peter Bryce, primeiro Diretor de Saúde do Canadá (1904-1920), relatou regularmente prédios de péssimas condições, mal ventilados, suprimentos inadequados de alimentos e a falta dos cuidados básicos de enfermaria.
Ele descobriu que um quarto dos moradores havia morrido de tuberculose, varíola, sarampo e gripe. Ele reconheceu isso não apenas como assimilação, mas como extinção forçada.
O chefe de Assuntos Indígenas ignorou seus apelos e finalmente desfinanciou os relatórios anuais de Bryce. Em sua aposentadoria em 1922, ele revelou os objetivos perversos das escolas residenciais no livro “The Story of a National Crime: An Appeal for Justice for the Indians of Canada” (“A história de um crime nacional: um apelo por justiça para índios do Canadá”, em tradução livre) .
Entre 1870 e 1996, o Canadá tinha 132 escolas residenciais como uma “joint venture” com grupos anglicanos, presbiterianos, da Igreja Unida e ordens religiosas católicas. Muitas crianças receberam ajuda e educação.
Tragicamente, quaisquer benefícios foram superados pelos danos dos abusos físicos, emocionais, espirituais e culturais que exigem expiação.
Na década de 1960, quando surgiram questões de racismo e discriminação na América do Norte, a saúde aborígine foi revelada como um exemplo trágico.
Sob o primeiro-ministro Pierre Trudeau, o ministro de Assuntos Indígenas, Jean Chretien, emitiu um Livro Branco em 1969 que propunha a remoção de seu status legal único. Mas os líderes indígenas rejeitaram isso como mais uma tentativa do governo de assimilá-los.
O Acordo de Liquidação das Escolas Residenciais Indianas em setembro de 2007 forneceu 1,9 bilhão de dólares estadunidenses em compensação direta para estudantes residenciais do Governo Federal. Em 2020, os sobreviventes da escola diurna eram elegíveis para um mínimo de 10 mil dólares cada.
As igrejas também financiam programas de apoio à cura. Mas aprendemos que o dinheiro por si só não traz cura.
As desculpas tornaram-se estratégias politicamente corretas para atrocidades passadas. Desculpas significativas exigem aceitação explícita da responsabilidade pelo erro, arrependimento pelo dano, sensibilidade para com os prejudicados e ação corretiva.
Tecnicamente, ele só pode se desculpar pelo que fez ou deixou de fazer. No entanto, o significado simbólico pode ser grande.
Em 2006, o primeiro-ministro Stephen Harper ofereceu desculpas por parte dos canadenses e estabeleceu uma Comissão de Verdade e Reconciliação.
O primeiro-ministro Justin Trudeau, filho de Pierre, mudou a culpa quando ele pediu para o Papa Francisco pedir desculpas pelas mortes em Kamloops.
Houve alguns pedidos de desculpas por papas: João Paulo II a fez em 1984 em visita ao Canadá; Papa Bento XVI desculpou-se por líderes indígenas que visitaram o Vaticano em 2009; o Papa Francisco pediu desculpas quando esteve na Irlanda em 2018 e depois em 2021 a uma delegação de anciãos.
Mas nenhuma dessas desculpas abordou a cumplicidade da Igreja Católica com o genocídio colonial canadense. Outras tragédias semelhantes ocorreram na Austrália, Irlanda, Estados Unidos e além.
Em minha luta para entender essa tragédia, agora sei que devemos avaliar criticamente e em oração as crenças subjacentes e as práticas da Igreja que promoveram essa contradição com as palavras e o testemunho de Jesus.
As condições para o genocídio exigem uma visão de mundo em que algumas pessoas e modos de vida não sejam tão valiosos quanto outros ou, na pior das hipóteses, nem sejam totalmente humanos.
O Papa Nicolau V promulgou a “Doutrina do Descobrimento” em 1455, uma bula papal que reconhecia a noção de terra nullius.
Alegou que a terra não era nada até 'descoberta', nomeada e ocupada por cristãos e coloca o racismo e o privilégio branco europeu no coração da Igreja. O status especial foi reforçado pela crença de que a Igreja é santa e não pode pecar.
A conversão forçada ao cristianismo é uma contradição à evangelização, que promove o conhecimento de Jesus como sinal do amor e da misericórdia de Deus. A experiência indígena foi de crueldade e disciplina dura.
Os espancamentos e comentários humilhantes de padres religiosos, irmãos e irmãs sobre o idioma e a cor da pele só podem ser entendidos no contexto de status especial e influência corruptora da hierarquia composta por uma mentalidade de obediência inquestionável à autoridade.
Tudo isso é uma falha abjeta em respeitar a dignidade fundamental de todas as pessoas que são criadas “à imagem de Deus”.
É urgentemente necessário mais discernimento da teologia patológica.
Esses problemas verdadeiramente complexos estão em andamento, como demonstrado pelo Serviço Social de remoção de crianças indígenas para acolhimento familiar no período chamado “Sixties Scoop” e pela falta de água potável nas reservas.
O Papa Francisco e a Igreja Católica devem reconhecer as questões mais profundas que ainda precisam de conversão à “mente de Cristo”. Caso contrário, quaisquer desculpas continuarão a soar vazias.
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Canadá. O “complexo problema” das escolas residenciais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU